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NÃO EXISTE RACISMO NO BRASIL, NEGÃO!
PERSONAGENS:
FRANCISCO
GOVERNADOR
MASCARENHAS
DUÍLIO
SECRETÁRIA
(Dona Neusa)
MARIA
LUIZA (Filha do Governador)
JARBAS
E SEGURANÇAS
Gabinete
do Governador. Foto dele na parede com seu nome , seu cargo e uma grande
faixa de pano escrito “Zumbi, rei do Brasil!”. Ele entra em cena. Está
irado, sua secretária vem logo atrás aflita com seu nervosismo.
GOVERNADOR
Um
preto! Um preto! Só um! É pedir demais? Um preto?!
SECRETÁRIA
Pelo
amor de Deus Governador, tem repórter aí fora! O Duílio ia dar um jeito.
Deve ta chegando...
GOVERNADOR
(Dando um murro na mesa)
Uma
ova! Fosse na Escandinávia, na Islândia. Mas no Brasil ? Boto vocês no olho da
rua!
SECRETÁRIA
Por
favor Governador, fala um pouco mais baixo...
GOVERNADOR
Onde
já se viu? Vou render homenagem à raça negra sem nenhum preto presente? Ao
invés de limpar minha barra vou sujar de
vez. Isso sim é serviço de preto!
SECRETÁRIA
Minha
nossa. Se alguém ouve isso... Já foi taxado de racista no Brasil inteiro.
Fala um pouquinho mais baixo... Temos que reverter a situação.
GOVERNADOR
Assim?
(Aponta para a faixa) Homenageando alguém que eles nem conhecem? Preferia
“Pelé, Rei do Brasil”.
SECRETÁRIA
Ele
não é consenso na comunidade negra.
GOVERNADOR
E
preto lá tem consenso em alguma coisa? Só no carnaval. E ainda assim atravessam
no samba.
SECRETÁRIA
Eu
lhe rogo Governador... modere seus comentários. Tem que dar algo a raça Negra ,apagar
aquela entrevista, a suspeita de conivência com ataque a templo afro...
GOVERNADOR
Virei
líder religioso agora? Vai ver queimar Terreiro é parte do culto evangélico
radical. Como vou saber? Por falar em dar pra raça negra... você namorou um
negão, não foi?
SECRETÁRIA
(Desconcertada)
Eu?!
Imagine... não sei do que tá falando.
GOVERNADOR
Namorou
sim senhora. Ate ganhei uma aposta que fiz com o Duílio.
SECRETÁRIA
(Horrorizada)
Eu
não acredito... E que aposta foi essa? Se eu era capaz de namorar um negro?
GOVERNADOR
Não.
Se era capaz de namorar um homem. Independente da cor.
SECRETÁRIA
Como
assim?
GOVERNADOR
(Ar conciliador)
Dona
Neusa, não leve a ferro e fogo, mas corria um
boato forte de que era sapatão.
SECRETÁRIA
Sa-sapatão...
E-eu?
GOVERNADOR
Exatamente.
SECRETÁRIA
Gentalha!
Eu pareço sapatão?
GOVERNADOR
(Olhando detidamente de cima para baixo)
Bom...
não dá pra dizer que é... (Olhando novamente) Mas também não dá pra dizer que
não é...
SECRETÁRIA
Tá
pondo em dúvida minha sexualidade?
GOVERNADOR
Eu
não! O Duílio que duvidou. Casei cinquenta reais que não era sapatão. Por
isso ganhei.
SECRETÁRIA
Cinquenta
reais? É isso que vale minha honra?
GOVERNADOR
Não
seja dramática. O Duílio me pagou um chope também.
SECRETÁRIA
Em
algum momento pensou em me defender?
GOVERNADOR
Foi
o que eu fiz. Casei cinquenta reais na senhorita.
O
Duílio teimou. Só pagou depois que o negão apareceu.
SECRETÁRIA
Que
negão? Digo, que afro-sulamericano seria esse?
GOVERNADOR
O
que andou te pegando um tempo atrás.
SECRETÁRIA
(Ofendida)
O
senhor me respeite! Ninguém andou me ‘pegando’ não senhor.
GOVERNADOR
Não
foi bem isso que a câmera de segurança gravou.
SECRETÁRIA
(Assustada)
Ca...
câmera de segurança... Mas... mas tem câmera no fundo do estacionamento? Na...
na mangueira?
GOVERANDOR
Não. Me refiro a da cancela. Na saída lateral.
SECRETÁRIA
Cancela?
GOVERNADOR
Sim
dona Neusa, na cancela. A senhorita tá passando mal?
SECRETÁRIA
Nas
imagens aparece o que? Por favor... não me esconda nada...
GOVERNADOR
Bem...
aparece o negão saindo com você. Rolou até um beijo rápido. Foi o argumento pra
convencer o Duilio.
SECRETÁRIA
(Super insegura)
So-só
isso? Mas o senhor citou a parte dos fundos... na mangueira.
GOVERNADOR
Quem
citou foi você. Não tem câmera na
mangueira. Ninguém põe carro naquela lonjura.
SECRETÁRIA
(Aflita)
Pedir
isso a um político pode parecer tolice mas...o senhor jura por Deus?
GOVERNADOR
Quantas
vezes vou ter que repetir? Não tem câmera
na mangueira.
SECRETÁRIA
(Aliviada)
Graças
a Deus...
GOVERNADOR
A
senhorita tá aflita com o quê?
SECRETÁRIA
Com...
com... com essa aposta infame.
GOVERNADOR
Nem era pelo dinheiro. Era pela competição, coisa
de homem. Tipo num bilhar ou carteado.
SECRETÁRIA
Puxa...
obrigada pela consideração. Agradeça ao Duilio por mim.
GOVERNADOR
Quantos
anos tem ?
SECRETÁRIA
Trinta
e cinco.
GOVERNADOR
Ta
vendo? E nunca casou, nunca teve filhos, não te veem com namorado. Daí a
dúvida. Quantas vezes eu e o Duilio convidamos pra sair com a gente? Quantas?
Nunca aceitou.
SECRETÁRIA
Eu não
ia me sentir bem num bordel Governador.
GOVERNARDOR
Que
isso dona Neusa? Tirou o dia pra me afrontar? Não são bordeis não senhora, são
ambientes de alto nível. Com shows, cassino, sauna, piscina...
SECRETÁRIA
Garotas
de programa...
GOVERNADOR
Também...
Mas a ideia de te convidar foi do Duílio. Ele achou que você podia gostar das
garotas de programa...
SECRETÁRIA
As
pessoas reclamam que político mente muito. Mas quando falam a verdade eles
ficam ainda piores. Alias, convém lembrar:
cassino é proibido no Brasil.
GOVERNADOR
Sei
disso. Tudo é na maior discrição.
SECRETÁRIA
Briga
de Galo também.
GOVERNADOR
(Surpreso)
A
senhorita já tá sabendo?
SECRETÁRIA
Estou.
GOVERNADOR
(Constrangido)
É
um hábito antigo. Mas to perdendo o gosto.
Perdeu a graça depois que meu galo de estimação, o Jean-Claude Van Damme
, morreu na rinha. Uma coisa muito triste dona Neusa... Pior do que perder
cinquenta mil reais na aposta, foi perder o Jean-Claude... Enfrentou um galo
Malaio chamado Dragão Negro. Parado ninguém dava um conto pro malaio. Não era páreo pro meu Jean-Claude. Na
rinha o malaio justificou o nome. Sô faltou soltar fogo pelo bico.
Jean-Claude foi valente dona Neusa... (Se emociona) Foi valente. Se
acertou três golpes no malaio foi muito. Mas não refugou, enfrentou a
rinha. Foi macho! (Se emociona de novo) Morreu nas minhas mãos... Nem deu
pra levar no veterinário... Ainda chamei ele: “Jean-Claude “. Ele inclinou a
cabeçinha ...e desfaleceu... tava morto. (Se emociona, leva as mãos aos olhos,
se recompõe)
SECRETÁRIA
Deixa
ver se eu entendi... Apostou cinquenta mil reais num galo. E em mim, um ser humano que
lhe devota fidelidade canina, o senhor apostou cinquenta reais?
GOVERNADOR
Se
quiser tomar o lugar do saudoso
Jean-Claude e enfrentar o Malaio , caso cinquenta mil na senhorita sem
pestanejar!
SECRETÁRIA
Governador
o senhor trata seus amigos e seus inimigos de forma tão parecida, que eles
nunca sabem se são uma coisa ou outra. Acho melhor voltarmos ao assunto.
(Aponta pra faixa) O projeto Zumbi rei do Brasil.
GOVERNADOR
Mas
eu não sai do assunto, por isso citei o seu negão.
SECRETÁRIA
O
quê ? Não vou pedir nada praquele cafajeste. E o Jorge, esse é o nome do
cafajeste, odeia o senhor.
GOVERNADOR
Pois
é... vai fazê-lo mudar de ideia através de vantagens financeiras e sexuais.
Essa combinação dificilmente da errado.
SECRETÁRIO
O
senhor me respeite, sou uma profissional! (Percebe a ambiguidade do que falou)
Quer dizer... não esse tipo de profissional.
GOVERNADOR
Dona
Neusa... eu desci muito ao lhe fazer essa proposta e a sua recusa me fará
descer ainda mais. Aceite agora pra não encarar algo ainda mais sórdido
adiante.
SECRETÁRIA
Vou
ligar e oferecer dinheiro. Só isso! (Pega o celular, atendem) Alô, Jorge.
Sou eu, Neusa... Neusa... Como que
Neusa? Tivemos um namoro há sete meses... Namoro...Tá! Um relacionamento.
... Neusa! Com S, vai ver é por isso que não tá lembrando... Quantas
Neusas conheceu nesse período ? ... Como nenhuma?! Eu sou Neusa pombas! A
Neusa funcionária pública, secretária do Governador! Lembra agora? ... Não
Jorge, eu nunca me chamei Fátima... Jorge , pelo amor de Deus, deixa o lance da
mangueira pra lá. Tenho uma proposta pra você. Por um bom dinheiro. Pra
trabalhar com o governador. ... Como assim canalha? (O Governador olha
assustado)... Isso é discurso da mídia! O que ele disse foi : Minha filha não
namora nenhum afro-sulamericano. Só isso! O termo ‘ preto-safado ’ é
coisa da imprensa. É preciso conhecer pra julgar. A primeira vista o que
se vê? (Aponta para o Governador) Um homem egoísta, arrogante, manipulador,
quase um sociopata. (Governador olha pra ela horrorizado) Mas acredite Jorge, por trás desse homem
pusilânime, oscilando na linha que nos define como humanos, existe uma criança
frágil e inocente. Que fica com os olhos rasos d’água ao lembrar da morte
de passarinho de estimação.
GOVERNADOR
Oferece
trezentos mil pro criolo. Dinheiro vivo, miúdo, que consigo com bicheiros.
SECRETÁRIA
Ele
te propõe trezentos mil reais. Em espécie. Notas não rastreáveis, conseguidas no
entretenimento informal. ... Ele quer seiscentos mil e o nome dele não pode
aparecer.
GOVERNADOR
Manda
ir a merda! Preciso de um preto pra exibir.
Com um dinheiro desses o criolo passa cem anos fumando maconha. Ele,
seus filhos e os filhos dos seus filhos!
SECRETÁRIA
O
Governador agradece penhoradamente sua contraproposta. Porém precisa de
um Afro-sulamericano pra dividir o palanque. ... Para de me chamar de Fátima!
Ninguém vai te linchar, Jorge. ... Até
os traficantes estão contra o Governador? ... Os milicianos também? ... Uma
meia dúzia de Terreiros pega fogo e a culpa é dele? ... Eu digo o que pro
Governador? ... Tá, eu falo... Não precisa ser rude! (Desliga) Ele agradeceu
penhoradamente mas lamenta não poder aceitar sua oferta.
GOVERNADOR
E
na real? Disse o quê?
SECRETÁRIA
Mandou
o senhor pegar esse dinheiro e enfiar no...
GOVERNADOR
(Interrompendo)
Ta,
ta, ta, ta! Eu já entendi!
Ouve-se a voz de alguém cantando: “Eu sou
negão / Eu sou negão...” e tocando um instrumento de percussão.
SECRETÁRIA
Deve
ser o Duílio. Ele encontrou um preto! Digo.., um afro-sulamericano.
GOVERNADOR
Será
que é bem escurinho? Um pardinho vão dizer que é branco.
Entra Duílio fantasiado de jamaicano.
Cara pintada de preto, dreadlock e roupas de acordo. Canta e dança ainda mais
um pouco. Ao terminar o Governador vai até ele e passa o dedo em seu rosto pra
conferir a tinta preta.
GOVERNADOR
(Olhando a mancha preta no dedo)
Que
palhaçada é essa Duílio?
DUÍLIO
Foi
o único jeito. Nenhuma liderança negra aceitou. Faremos uma campanha pró-negro
sem negro.
GOVERNADOR
Ta
maluco? Quer que eu passe recibo?
DUÍLIO
E
nós vamos fazer o quê?
GOVERNADOR
A
parte do ‘nós’ composta por eu e você vai esperar. A parte composta pela dona Neusa, vai dar pro
negão! (Pra ela) Se tivesse oferecido os trezentos mil na cama, o criolo tinha
aceitado.
SECRETÁRIA
(Horrorizada)
Isso
é atitude de um Governador de
Estado? Seviciar suas
funcionárias?
GOVERNADOR
Não
seja ingênua. Ja me viu tomar uma atitude a altura do meu cargo? Eu sou baixo
dona Neusa! Baixo!
DUILIO
Gente...
alguém pode explicar o que tá acontecendo?
Toca o telefone. Neusa vai atender.
GOVERNADOR
Estou
cercado por incompetentes! Cercado!
Vamos ter que obrigar algum funcionário a aceitar.
DUÍLIO
Não
tem negro aqui. Só a nutricionista. E ela, quando muito, é mulata.
GOVERNADOR
Ta
vendo?! Isso sim é uma coisa racista. Temos que dar oportunidade as minorias.
Hoje a gente precisa de um preto, amanhã pode ser um índio, um favelado, um
inválido, um viado... Quer dizer...Viado tem muito, mas tá tudo enrustido.
SECRETÁRIA
É o
Jarbas da segurança. Tem um homem exigindo falar com o senhor.
GOVERNADOR
Nem
pensar! Dispensa. (Para , pensa um pouco) Um minuto... Pergunta a cor do homem.
SECRETÁRIA
Alô
Jarbas, de que cor é esse homem. ... Ele disse que é um preto, digo,
afro-sulamericano.
GOVERNADOR
( Tira o telefone das mãos dela e fala diretamente)
Eu
quero ele! È o homem que to procurando, Jarbas ! Não deixa escapar. Traz pra
mim! (Desliga)
DUÍLIO
E
vai servir? Um desconhecido, um homem comum? Teria que ser representante de
alguma coisa.
GOVERNADOR
Pelo
menos é preto natural e não pintado a guache! A gente inventa alguma coisa. Diz
que é descendente de um rei africano ou sei lá o que.
Ouve-se o som de alguém apanhando e
gritando.
SECRETÁRIA
Nossa...
O que é isso?
DUÍLIO
Gozado...
parece alguém apanhando.
GOVERNADOR
Não
diga sandices. Um preto vindo aqui é pra me xingar ou pedir favor. Vamos rezar que seja um esfomeado com filho
doente. Fica mais fácil corromper.
SECRETÁRIA
Deus
te ouça. Assim não precisa prostituir suas funcionárias.
GOVERNADOR
(Com lástima)
O
que lhe sobra em preparo acadêmico, lhe falta em espírito cívico.
DUILIO
Pra
isso tá faltando peito e bunda também.
SECRETÁRIO
(Avançando pra cima de Duilio)
O
QUÊ? Sô não dô na tua cara pra não sujar a mão de preto! Eu sei o que andou
falando de mim!
GOVERNADOR
Chega!
Não vamos perder o foco. E ter disposição pro trabalho e não pra briga.
Entra Jarbas, o segurança.
JARBAS
Não
adianta Governador. O cara é marrento.
GOVERNADOR
(Não entendendo)
Do
que sê tá falando? Cadê o homem?
JARBAS
É
dele que to falando. Já tomou meia dúzia de safanão e não confessou nada.
GOVERNADOR
(Horrorizado)
Vocês
bateram nele?
JARBAS
(Confuso)
Como
assim? Não era pra bater?
SECRETÁRIA
Estamos
perdidos...
GOVERNADOR
Claro
que não imbecil, seu lunático!
JARBAS
Mas
tava dando alteração e o senhor falou daquele jeito... Melhor apertar mais um
pouco. Aquilo não tem cara de ser boa coisa.
GOVERNADOR
TRAGA
ELE AQUI, AGORA! EU FALEI, AGORA!
Jarbas
assustado dá uma ordem pelo rádio que tem na lapela. Entram dois seguranças
trazendo Francisco pendurado num pau de arara.
GOVERNADOR
(Horrorizado)
Tirem
ele daí! Bando de imbecis! Eu não acredito... eu não acredito....
Os
seguranças soltam Francisco e saem resmungando.
GOVERNADOR
(Enquanto os seguranças estão saindo)
Degenerados!
Não servem nem pra tomar conta de
pracinha! (Para Francisco) Não tenho palavras pra me desculpar. Qual é a
sua graça?
FRANCISCO
Francisco.
GOVERNADOR
Veja
bem Francisco...
FRANCISCO
(Interrompendo)
Senhor
Francisco, por favor....
GOVERNADOR
Sim,
claro... Veja bem, senhor Francisco. Faço questão de indenizá-lo pelo dano
moral.
FRANCISCO
Eu
também! Mas isto é tarefa do judiciário e não do executivo!
GOVERNADOR
Eu
entendo a sua revolta. Mas o senhor é um homem inteligente, a gente vai se
entender. Duílio, traga alguma coisa para o senhor Francisco
beber e se recompor. Dona Neusa pode ir providenciando aquele assunto. Dê andamento nos preparativos.
Saem
Duílio e a Secretária.
GOVERNADOR
Como
o senhor sabe a justiça é lenta e um processo por agressão não iria prosperar.
FRANCISCO
Agressão?!
Faltou sequestro, cárcere privado, tortura e pra arrematar... racismo!
Governador
(Olhando em volta temendo ser ouvido)
Não
me diga uma coisa dessas. E depois... tá exagerando. Sequestro e cárcere privado? O senhor é que
veio aqui...
FRANCISCO
Mas
depois eu quis sair e não deixaram... E ainda me chamaram de ‘preto safado’ uma
dezena de vezes.
GOVERNADOR
Eles
o chamaram de ‘afro-sulamericano safado’ ?
FRANCISCO
Exatamente.
Me chamaram de ‘preto-safado’!
GOVERNADOR
Estou
estupefato! Nesse baluarte da democracia nacional, uma pessoa da etnia negra,
foi chamado de afro-sulamericano safado. Estou chocado... (Simula emoção)
Perdoe se me faltarem as palavras...
FRANCISCO
Falta
memória também. Ao saber que a filha namora um negro disse coisa bem pior.
GOVERNADOR
(Irado)
Minha
filha não namora preto nenhum! (Se recompondo) Digo... minha filha não tem laço
afetivo com um afro-sulamericano. O que seria motivo de satisfação. Inclusive,
não sei se o senhor sabe, mas sou até filho de Iansã.
FRANCISCO
Filho
de Iansã?! Na campanha eleitoral o senhor era evangélico.
GOVERNADOR
(Disfarçando)
Mas
não mudemos de assunto, senhor Francisco. O senhor merece uma reparação.
Entra Duílio com
um copo de bebida e entrega a Francisco.
FRANCISCO
(Após cheirar a bebida)
Eu
não bebo cachaça, meu senhor.
GOVERNADOR
(Irritado)
Você
trouxe cachaça?
DUÍLIO
Trouxe...
o senhor mesmo não diz que pobre...
GOVERNADOR
(Interrompendo)
Chega!
(Para Francisco) Tem dia que é melhor nem sair da cama. (Para Duílio) O senhor
Francisco merece um uísque ou um bom vinho.
FRANCISCO
Não
estou sedento de bebida e sim de justiça.
GOVERNADOR
Pois
é isso que o senhor vai ter. E com sobra! Vou nomea-lo presidente do projeto
‘Zumbi , rei do Brasil’. É quase uma secretaria. Com as mesmas mordomias. É o
mínimo que posso fazer pra me redimir.
DUILIO
Mas
Governador, as lideranças negras do país estão se digladiando por esse cargo.
Não param de me ligar.
GOVERNADOR
Pois
que percam as esperanças. O senhor Francisco é o nosso homem !
DUILIO
Eles
vão insistir. Melhor providenciar uma aparição pública com o senhor Francisco
hoje mesmo. Assim eles desistem.
GOVERNADOR
Bem
pensado Duilio. O projeto ’ Zumbi, rei do Brasil’ , já tem presidente.
FRANCISCO
Não
sei... mas acho que to gostando da ideia... Eu topo!
GOVERNADOR
Maravilha!
Precisamos prepará-lo pra entrevista.
FRANCISCO
Posso
fazer uma pergunta?
GOVERNADOR
Claro.
FRANCISCO
(Apontando para Duílio)
Porque
esse sujeito tá fantasiado de negro?
GOVERNADOR
(Sem saber o que responder)
Ora...
ele...ele... Boa pergunta. Por que tá fantasiado de afro-sulamericano, Duílio?
DUÍLIO
E-eu?!
GOVERNADOR
Não
é de você que estamos falando?
DUÍLIO
Ora...
a explicação é simples...
GOVERNADOR
Sei...
e qual seria?
DUÍLIO
Teatro!
Uma peça. Eu faço um cantor de reggae.
FRANCISCO
Ah
é?! E por que não escolheram um ator negro?
DUÍLIO
(Sarcástico)
Ora...
um negro...no teatro?
FRANCISCO
(Horrorizado)
Como
é que é?
GOVERNADOR
Não
diga sandices! Ele se expressou mal. Ta tapando um buraco. Só isso.
FRANCISCO
Tá
me cheirando a racismo.
GOVERNADOR
(Batendo na mesa)
Não
existe racismo no Brasil, negão! (Se recompondo) Digo..., senhor
Francisco. Não aguento mais ouvir falar
nisso. Sejamos francos. Essa coisa de racismo,racismo,racismo...é coisa de
preto... Duilio vá avisar a Neusa sobre a novidade. Temos muito trabalho.
Duilio sai.
GOVERNADOR
Mas
enfim... Tomou a decisão certa, Seu Francisco. Não ia ganhar nada me
processando.
FRANCISCO
Tal
ideia nunca me passou pela cabeça.
GOVERNADOR
(Surpreso)
Como
é que é? E o sequestro, cárcere privado, tortura?
FRANCISCO
(Se divertindo com a surpresa do Governador)
Estava
blefando.
GOVERNADOR
Blefando?
Como assim, blefando? Não dá pra negar. Motivos tinha de sobra.
FRANCISCO
Não
podia perder a oportunidade de duelar com o grande mestre. (Vai até ele) Eu sou
seu fã! (Abraça o Governador)
GOVERNADOR
(Ainda mais surpreso)
Fã?
Se explique melhor ... o senhor tá me assustando...
FRANCISCO
Meu
caro Governador, desde menino sou fã dos grandes homens da história, dos
grandes políticos, conquistadores, mestres da estratégia: Átila,
Júlio
Cesar, Xerxes , Nero, Napoleão, Mao Tse-tung, Stalin. Eu recortava imagem
deles e colava na parede do quarto.
GOVERNADOR
(Ainda sem entender)
Defina...
Grande Homem...
FRANCISCO
Ora
Governador, que cara de surpresa é essa?
GOVERNADOR
Seu
Francisco os negros do país me odeiam e logo o senhor, que até apanhou aqui se
diz meu fã?! Aliás, o que veio fazer aqui?
FRANCISCO
Vim
ajudá-lo. Um grande homem precisa de uma assessoria a altura. Como diziam
muitos dos que estão colados na minha
parede: ‘Os fins Justificam os meios’. Essa farsa de ‘Zumbi, rei do Brasil’ me
parece meio fraca. Mas é melhor do que
se juntar a seitas evangélicas e queimar terreiros.
GOVERNADOR
Calúnia!
Ninguém tem prova que foi gente minha. (Ar matreiro) Era...era só pra dar um
susto na negrada. Sem ofensa... Exageraram! Não vê a surra que te deram?
Eu só mandei trazê-lo aqui. Preciso de voto, de dinheiro pra campanha, isso
custa fortunas. Mas disse uma verdade.
Sou muito mal assessorado. Não conseguiram um preto sequer pra assumir o
‘Zumbi, rei do Brasil’. Essa que é a verdade. Vou lhe confessar, foi Deus que
trouxe o senhor aqui.
FRANCISCO
Na
verdade foi meu santo de devoção.
GOVERNADOR
Que
santo? São João Batista, São João Evangelista, São Judas Tadeu?
FRANCISCO
São
Exu Caveira.
GOVERNADOR
(Espantado)
Exu
Caveira? Foi ele que te mandou aqui?
FRANCISCO
Foi.
Na verdade teria vindo antes, mas ele mandou esperar o momento certo.
GOVERNADOR
Eu
não acredito nessas coisas. Mas to precisando de um preto que não seja pintado
a Guache. Sei lá... Acho o nome dessa
entidade ,‘Exu Caveira’, meio bizarro, meio tosco... É bem coisa de preto
mesmo. Espero que ele não se ofenda.
FRANCISCO
Que
isso Governador, uma entidade de nome Exu Caveira, não pode ser do tipo que
guarda ressentimento.
GOVERNADOR
(Estranhando)
É?
Esse...esse santo mandou fazer uma coisa boa? Não foi?
FRANCISCO
Muito.
Uma nova Era se abre a nossa frente. GOVERNADOR
A
troco de quê? Na certa vai me pedir uma oferenda.
FRANCISCO
Na
verdade ele não me mandou pedir e sim vir buscar. Mas deixe isso comigo. Vamos ao ‘ Zumbi, Rei
do Brasil’. Ter um negro num cargo
importante não é suficiente. Precisa comover as pessoas. Falarei da minha
estória. Um menino pobre e negro, que um dia desmaiou de fome em pleno
cruzamento. Pensando ser um atropelado o senhor me socorreu. E no hospital, ao
saber que tinha sido a fome, o senhor chorou... Chorou e segurou forte na minha
mão e teve naquele instante a ideia de criar o
“Estado Sem Fome”.
GOVERNADOR
Excelente!
Mas quando for citar a fome use o verbo no passado. A fome não existe
mais aqui.
FRANCISCO
Ah
não?
GOVERNADOR
Eu
prometi acabar com a fome em dois anos e estou no terceiro ano de mandato.
Portanto, a fome não existe mais.
FRANCISCO
Pois
ela ameaça voltar ! Em função dessa campanha insidioso contra o senhor. Na
verdade eles querem é atingir o ‘Estado sem Fome’. Esse tem que ser o foco,
assim o ‘racismo’ vai pra segundo plano. A bem da verdade: o senhor é a vítima!
Farei um relato emocionado de como o senhor cuidou de mim, meus irmãos e minha
mãe doente.
GOVERNADOR
Cega!
Adoro mãe cega!
FRANCISCO
Melhor
câncer. Assim ela morre e me deixa órfão com três irmãos.
GOVERNADOR
Não
pode as duas coisas, ela fica cega e depois morre de câncer?
FRANCISCO
Vai
ficar exagerado.
GOVERNADOR
Então
ela morre de um tipo raro de cegueira.
FRANCISCO
Nem
sei se isso é possível. Vai ficar complicado e mentira tem que ser simples.
Algo incomum ou complexo atiça o raciocínio. E isso sim é o câncer da mentira.
GOVERNADOR
Sou
obrigado a concordar. Estou impressionado senhor Francisco. Não é a toa que
esse tal Exu Caveira o tem em grande conta. Espero não ter queimado nenhum
terreiro dele.
FRANCISCO
Na
verdade queimou três.
GOVERNADOR
Pois
transmita as minhas desculpas. Saiba que se culto Afro me desse dinheiro e
voto, queimaria igreja evangélica sem pestanejar. Nesse particular eu sou um
homem justo.
FRANCISCO
Não
se preocupe. Foram razões de Estado e a elas todo grande homem tem de se
curvar. Não foi pessoal.
GOVERNADOR
Tem
talento pra política, meu caro Francisco. Já pensou nisso?
FRANCISCO
É
outro sonho de menino.
GOVERNADOR
E
que lugar almejaria nesse momento?
FRANCISCO
O
seu.
GOVERNADOR
(Achando graça)
Vejo
que tem senso de humor. Precisa ensinar isso a dona Neusa. Ela tá se
tornando uma solteirona clássica.
(Matreiro) Ela gosta de negão, tá afim?
FRANCISCO
(Interessado)
Sério?
GOVERNADOR
E
se além de negão for cafajeste ela se apaixona na hora.
FRANCISCO
Não
vou precisar mais de trinta minutos. (Ri) Ela tem um ar meio ingênuo, meio
provinciano. Me admira trabalhar com o senhor.
GOVERNADOR
Não
se iluda, ela é muito competente. É de confiança, esta comigo a anos, ideal pra
gerenciar assuntos delicados, se é que você me entende...
FRANCISCO
Não
tem o perfil de quem cuida de conta secreta no exterior e empresa fantasma.
GOVERNADOR
As
aparências enganam meu caro Francisco... Pera aí! Quem te disse isso?
FRANCISCO
Se
o senhor não está nisso por dinheiro, me fale que eu vou embora agora. E tiro
sua foto da minha parede.
Os dois riem. Ar de velhos camaradas.
GOVERNADOR
Gostei
de você Francisco. Vou até despedir essa corja de seguranças.
FRANCISCO
Não
faça isso! Vi uma reportagem no Discovery que assedio moral no trabalho também
dá câncer. Vou testar com eles. Vão sair
daqui direto pra quimioterapia.
GOVERNADOR
(Ri)
Ela
tá vindo aí... Vou deixar vocês a sós. Uma dica: se for pegar ela no carro, use
a vaga embaixo da mangueira.
Entra
Dona Neusa.
GOVERNADOR
Dona
Neusa explique nossos procedimentos ao senhor Francisco. Vou conferir se o
Duilio tá trabalhando ou colorindo mais alguma coisa.
SECRETÁRIA
Claro
Governador será um prazer.
Governador
sai.
SECRETÁRIA
Então
senhor Francisco, o senhor tem
experiência na área administrativa?
Francisco não
responde, limita-se a olhá-la como se estivesse hipnotizado.
SECRETÁRIA
(Estranhando)
Seu
Francisco... Tá tudo bem?
FRANCISCO
(Fica de joelhos diante dela, pega em sua mão).
Alice!
É você?
SECRETÁRIA
(Não entendendo nada)
Mas
não é possível. Os homens tem algum problema com meu nome.
FRANCISCO
(Aflito)
Não
mente pra mim Alice, eu sei que é você!
SECRETÁRIA
(Levantando Francisco)
Tá
me confundindo com alguém. Deve ser o
stress, esta confuso.
FRANCISCO
Não
faz isso comigo Alice. Eu sei que é você. Está mais madura, mais linda do que
nunca.
SECRETÁRIA
Eu
não sou a Alice, sou a Neusa, secretária do Governador. Seus olhos te enganam.
FRANCISCO
Não
são meus olhos. É meu coração... Ele é o único que dói quando penso em você
Alice ... (Se emociona)
SECRETÁRIA
Veja
meu crachá. (Dá o crachá a ele) Tem meu nome, minha foto... Passou por um
momento difícil, ta confuso.
FRANCISCO
(Olhando o crachá, ar perdido)
Sim...
dona Neusa. Claro... Me desculpe. To tão envergonhado...
SECRETÁRIA
(Tom maternal)
Tudo
bem. Eu entendo. Mas me diga, fiquei curiosa. Quem é essa Alice?
FRANCISCO
Minha
namorada de infância. O primeiro e único amor que tive na vida.
SECRETÁRIA
Nossa!
To impressionada. Era tão parecida comigo assim?
FRANCISCO
A
senhorita é ela. Com o agravante de ter se tornado ainda mais bonita. Ainda
mais feminina... nem pensei que fosse possível.
SECRETÁRIA
Puxa...
sério?
FRANCISCO
Você
torna rosa tudo ao seu redor. Imagino que não sou o primeiro a dizer isto, não
é?
SECRETÁRIA
Cla-claro...
Falam muito isso. Alguns acham que é coisa ensaiada, mas é meu jeito de ser. Eu
sou assim... feminina....
FRANCISCO
Posso
tocar os seus cabelos?
SECRETÁRIA
(Vacilante)
Meus
cabelos?
FRANCISCO
Sim.
Por favor, não se ofenda. Só quero tocá-los.
SECRETÁRIA
Bom..,pode...
FRANCISCO
(Tocando os cabelos dela, sentindo a textura)
Como
eu imaginava... a mesma textura de seda...
SECRETÁRIA
(Tímida)
Imagine...
Fiz escova há uns dias atrás... mas já saiu...
FRANCISCO
Me
perdoe, estou fragilizado... nem consigo disfarçar o encanto que provoca em
mim...
SECRETÁRIA
Puxa...
to impressionada. Está me fazendo reavaliar os homens...e pra melhor. Não pensei que isso fosse possível.
FRANCISCO
Desculpe
se te incomodo com meus comentários...
SECRETÁRIO
De
jeito nenhum... Que mais se gosta em mim?
FRANCISCO
Da
sua boca. (Aproxima-se mais dela, ela aceita a aproximação timidamente) Sabe
Neusa... Posso te chamar de Neusa?
SECRETÁRIA
Pode.
Posso te chamar de Francisco?
FRANCISCO
Pode.
Fala mais uma vez. Deixa eu ouvir o som do meu nome saindo da sua
boca.
SECRETÁRIA
(Muito tímida e sem jeito)
Fran...
Francisco...
FRANCISCO
(Emocionado)
Ta
vendo... é isso que gosto na sua boca. Torna bonito um nome tão feio, tão
comum, tão banal... A sua boca... A sua
boca...
Num rompante ele a beija.
FRANCISCO
(Com enorme arrependimento ao fim do beijo)
O
que foi que eu fiz... Me perdoe. Eu sou um canalha, mereço cada safanão que me
deram! Uma mulher como você só pode me beijar por pena.
SECRETÁRIA
(Aflita com a reação dele)
Não
diga isso. Não foi por pena... Não foi...
Se beijam novamente. Neusa o abraça afetuosamente. Ele retribui
com um abraço malicioso e apalpativo , a encoxa de maneira descaradamente
cafajeste, se esfregando nela acintosamente.
FRANCISCO
Pensei
que tava louco. E acertei! Tô louco por você.
SECRETÁRIA
Meu
Deus será que é isso? Duas almas solitárias que se encontram... e se completam?
FRANCISCO
E
mais do que isso. São duas almas tocadas pelo vento... produzido pelo bater das
asas de um anjo.
SECRETÁRIA
Que
loucura..que loucura...Nunca senti isso antes...
FRANCISCO
Tenho
tanta coisa pra te dizer. Vamos pra algum lugar tranquilo. Você veio de carro?
SECRETÁRIA
Vim...
Quinze minutinhos só.
FRANCISCO
O
estacionamento é grande? Tem um lugar tranquilo pra gente ficar?
Ele a beija no pescoço, ela se arrepia.
SECRETÁRIA
A
gente vai lá pro fundo. Perto da casa de força.
FRANCISCO
Onde
isso?
SECRETÁRIO
Reparou
numa mangueira bem grande no fundo do terreno?
FRANCISCO
A
mangueira...reparei.
SECRETÁRIA
É
lá... Vem...
Saem de cena
animados. Tempo. Entram Governador e Duílio.
GOVERNADOR
O
que achou dele Duílio?
DUÍLIO
Muito
branco.
GOVERNADOR
Sério?
Não achei. Tem porte, cor e jeito de negão.
DUÍLIO
Na
televisão , dependendo da luz, vai clarear.
GOVERNADOR
O
que sugere? Um pouco desse guache preto?
DUÍLIO
Bronzeamento
artificial e algumas pílulas de urucum. Vai ficar retinto.
GOVERNADOR
Por
falar nisso, cadê o Francisco e a Neusa?
DUILIO
Sei
lá. Sumiram faz um tempão.
Entram
Neusa e Francisco, ar furtivo, os dois estão desgrenhados, Francisco com a
braguilha aberta e os botões da camisa fechados em casas erradas, ao entrar em
cena ele se arruma apressadamente. Neusa ajeita os cabelos, a roupa em
desalinho. Governador e Duílio olham espantados para os dois. Depois se
entreolham maldosamente.
GOVERNADOR
Onde
estavam esse tempo todo?
SECRETÁRIA
Fui...
fui mostrar as dependências pro senhor Francisco .
GOVERNADOR
E
por que voltaram desgrenhados dessa maneira?
SECRETÁRIA
(Aflita, sem saber o que dizer)
Nó-nós?!
Des..,desgrenhados? Como assim?
FRANCISCO
Um
vendaval! Deu uma lufada de vento. Quase nos derruba.
GOVERNADOR
Sei...
Temos que tratar da nomeação e da apresentação a imprensa.
Entra
Jarbas, o segurança.
JARBAS
Com
licença, Governador. Dona Neusa, achei
seu crachá. Encontrei no estacionamento.
SECRETÁRIA
(Pega o crachá)
Ah
é. Puxa, nem notei que tinha perdido.
JARBAS
Essa
chave também é da senhorita?
SECRETÁRIA
Nossa!
Deixei cair... na pressa. Obrigado Jarbas, ia ficar louca procurando.
JARBAS
Esse
sutiã tava grudado nela, é da senhorita também? (Exibe o sutiã)
SECRETÁRIA
(Leva instintivamente as mãos aos seios, olha por dentro da camisa e percebe
que está sem sutiã)
O
sutiã... o sutiã... (Olha novamente por dentro da camisa. Fica atônita sem
saber o que dizer)
FRANCISCO
(Intervindo diante da perplexidade de Neusa)
Como
ousas se dirigir a uma dama de maneira tão infame?
JARBAS
Só
to perguntando, o sutiã tava enroscado na chave...
FRANCISCO
Ao
fugir da ventania, dona Neusa deixou cair o crachá e as chaves no chão. E a
mesma ventania trouxe a peça íntima de algum varal e ela se enroscou nas
chaves. Coisa que até uma criança é capaz de deduzir.
GOVERNADOR
(Após trocar olhares maliciosos com Duílio)
Ventou
muito lá fora Jarbas?
JARBAS
Que
isso... Tá um sol de rachar.
FRANCISCO
(Indignado)
Mas
então a coisa é mais grave ainda. Se não viu a ventania, quase um tornado,
devia estar afastado de seu posto. Deixando o chefe maior do estado a mercê da
própria sorte.
JARBAS
(amedrontado)
Lembrei!
Ventou sim. Ventou forte. Até telha chegou a voar. O sutiã veio de algum
varal, com certeza. Inclusive Francisco...
FRANCISCO
(Interrompendo)
Senhor
Francisco.
JARBAS
Inclusive,
senhor Francisco, eu queria pedir a você...
FRANCISCO
(Interrompendo novamente)
A
vossa senhoria.
JARBAS
Inclusive,
senhor Francisco, eu queria pedir a vossa senhoria que desculpasse o mau jeito
da segurança.
FRANCISCO
(Vai até ele, dá três tapinhas de leve no rosto)
Não
conte com isso...
JARBAS
(Sem graça)
Com
licença.
FRANCISCO
(Para Jarbas, interrompendo sua saída)
Não
vai pedir desculpas a dona Neusa, pela forma cafajeste com que se dirigiu a ela
?
JARBAS
(Ainda mais constrangido)
Claro...
Peço desculpas , dona Neusa, falei sem pensar.
SECRETÁRIA
Tudo
bem, Jarbas. Está desculpado.
JARBAS
Com
licença. (Sai)
Governador e
Duílio voltam a mexer no computador. Trocam olhares maliciosos e risinhos.
Neusa e Francisco conversam baixinho para eles não escutarem.
SECRETÁRIA
Nossa...
você é hábil com as palavras Francisco. Quase morri do coração.
FRANCISCO
Francisco
não. Me chama daquele outro jeito.
SECRETÁRIA
Tá
doido? O Governador e o Duílio podem ouvir.
FRANCISCO
Não
tão prestando atenção. Vai, chama.
SECRETÁRIA
Eu
tenho vergonha.
FRANCISCO
Uma
vez só, ninguém vai ouvir.
SECRETÁRIA
(Olhando para conferir se Governador e Duílio estão ouvindo. Os dois fingem
estar concentrados no computador)
Ti-
ticão...
FRANCISCO
Mais
alto.
SECRETÁRIA
Ticão.
FRANCISCO
De
novo gostosa.
SECRETÁRIA
Ticão!
O
Governador e Duílio tapam a boca para não rir.
SECRETÁRIA
(Falando baixinho pra ele)
Preciso
buscar outro sutiã no armário. Esses aí vão perceber que to sem nada por baixo.
FRANCISCO
Vai
gostosa,vai. Vai senão eu te pego de novo na frente deles.
Ela da um risinho e sai.
GOVERNADOR
(Cínico)
E
então? Ticão. Como foi o teste drive?
FRANCISCO
Meu
caro Governador, nunca se deve dizer que uma mulher tem pouco peito e pouca
bunda, sem tirar a roupa dela primeiro. Acaba cometendo injustiça.
GOVERNADOR
E
que papo é esse de Ticão?
FRANCISCO
É a
minha marca registrada. Na verdade, Ticão é o apelido do meu avantajado
membro. É assim que as mulheres que
foram a ele apresentadas me chamam. Pra distingui-las. Por mim marcava com
ferro em brasa... mas é politicamente
incorreto hoje em dia.
DUÍLIO
E
ela pareceu gostar da fruta?
GOVERNADOR
Não
seja mau perdedor, Duílio. Aqueles cinquenta reais eram herança de
família?
FRANCISCO
Acreditem,
o pau de arara e os safanões machucaram menos. O Ticão ficou todo ralado.
GOVERNADOR
Vou
cobrar michê a cada vez que uma funcionária te chamar de Ticão.
Todos
riem.
DUÍLIO
Ela
ta voltando, ela ta voltando.
Os três disfarçam,
Secretária volta.
SECRETÁRIA
Desculpe
Governador mas tem um grupo de deputados
querendo falar com o senhor.
GOVERNADOR
Eu
me livro deles, vem comigo Duílio. Vá adiantando com ela os pontos que
conversamos Francisco. Já volto.
Sai
Governador e Duílio.
SECRETÁRIA
Que
pontos são esses ?
FRANCISCO
Proteção
de dados. Como montar uma senha segura.
SECRETÁRIA
Senhas?!
Eu tenho uma forma simples. Uso poemas,
são fáceis de lembrar.
FRANCISCO
E
como você faz?
SECRETÁRIA
Uso
as duas primeiras letras de cada frase. Converto a posição da letra em número.
Letra A é 1, letra B 2 e assim vai. Por exemplo:
‘Mas
quem sente muito, cala
Quem
quer dizer quanto sente
Fica
sem alma nem fala
Fica
só inteiramente. ’
FRANCISCO
Fernando
Pessoa?
SECRETÁRIA
Isso!
Gosta?
FRANCISCO
Bastante.
SECRETÁRIA
Pois
então. Nesse poema as primeiras letras são M-A, Q-U, F-I, F-I. As seis
primeiras letras eu converto em números e as duas últimas ficam como letras
mesmo. Oito dígitos.
FRANCISCO
Genial!
Como é que nunca pensei nisso antes...
SECRETÁRIA
Mas
evite poetas populares.
FRANCISCO
Ele
mandou verificar as tais contas secretas, parece que houve um invasão hacker ou
tentava, não entendi direito. Disse que você saberia do que se trata.
SECRETÁRIA
(Estranhando)
Deve
ser paranoia dele. A pasta com dados e senhas tá na nuvem , num servidor super
seguro, criptografado, não tem como invadir. Não tem nada a ver com o sistema
daqui.
FRANCISCO
Não
custa dar uma olhada. Ele vai perguntar.
Ela vai até o
computador, Francisco a observa matreiro.
SECRETÁRIA
(Tentando lembrar a senha)
‘Tudo
se reduz a um único preceito... Tudo se reduz a um único preceito ‘. (Conta com
os dedos, lembra a senha e entra na página que queria no computador. Francisco
repete a frase que ela disse com os lábios)
Não
tem nada de errado. Se alguém põe a mão nessa pasta o Governador morre.
FRANCISCO
(Simulando tontura)
Nossa...tá
me dando uma tontura...Será que tem Apresolina ou Captopril na enfermaria?
SECRETÁRIA
Posso
ver. Se tá passando mal?
FRANCISCO
Deve
ser a pressão. É só tomar um comprimido que já passa. O ambulatório fica nesse
andar?
SECRETÁRIA
No
andar de cima. Eu o pego pra você, senta aí senão aumenta a tontura. Deixa eu
fechar aqui. Já volto!
Ela sai. Francisco corre para o computador.
FRANCISCO
‘Tudo
se reduz a um único preceito... Tudo se reduz a um único preceito... ’ (
Digita rapidamente ) Quem será que escreveu isso? (Pesquisa) ... Vamô lá... (Olha pra ver se
ela está voltando) Certamente é um poeta antigo e estrangeiro... ‘Tudo se reduz
a um único preceito... ’ ACHEI!
‘Tudo
se reduz a um único preceito,
que
escondo, mas direi, chegada a hora.
Eu
mais do que ninguém, a seu respeito,
mais
que vivos e mortos, sei agora. ’
Aleksander
Tvardovski, poeta russo. Adoro poetas russos... prostitutas russas... e principalmente... a
máfia russa. Vamos ver o dindim... T-U, Q-U, E-U, M-A... (Conta com os dedos,
calcula a senha, digita)... MEU DEUS DO CÉU! (Espanta-se) Não é possível!
O cara é um gênio! Conseguiu roubar tudo isso! Gênio! Ai, ai, ai, ai... Tudo
meu! Tudo meu! (Esfrega as mão) Vou mandar as informações pro meu e-mail...
Será que tem alguma ilha Grega a venda? Brigado Exu Caveira! Não pense que esqueci da sua
oferenda... ( Olha pra ver se ela está vindo ) Pronto! Tudo salvo. Ela disse
que o ambiente é criptografado... Vou mudar a senha e ver se ela tá mesmo
certa. (Olha, ela se aproxima) Pronto.
Ela vem vindo! (Falando para o PC como quem fala com uma criança) Papai vai
sair agora mas depois volta pra pegar vocês. Papai já vem. Não precisa chorar.
Vão ficar com o papai, mas não agora.... Bizu,bizu,bizu...papai ama vocês...
Ele
fecha a página e se afasta, ela volta.
SECRETÁRIA
Achei
Captopril.
FRANCISCO
Nem
vai precisar amor. Já passou. É assim... isso vem e passa.
SECRETÁRIA
Se
tá melhor mesmo amor?
FRANCISCO
Nem
imagina como...
Entram Governador
e Duílio.
GOVERNADOR
Francisco
já falei com o Duílio sobre aquela estória do desmaio no cruzamento e a mãe
cega.
FRANCISCO
Cega
não. Com câncer.
GOVERNADOR
Ah
é! To com isso na cabeça. É câncer Duílio.
DUÍLIO
Ah
tá! Tava achando estranho alguém morrer de cegueira.
GOVERNADOR
Dona
Neusa reforça os comes e bebes na sala de imprensa. Só vamos apresentar o
Francisco depois que os jornalistas estiverem de bucho cheio. Muito da fúria
republicana deles é fome.
SECRETÁRIA
Vou
conferir. Já volto.
Ela
sai.
GOVERNADOR
(Malicioso)
Muito
bem senhor Ticão... Vejo que dona Neusa está bem mais animada. Agora mãos a
obra... senhor Francisco.
DUÍLIO
Hoje
só fotos, depois redijo o discurso pra posse oficial e lançamento do ‘Zumbi,
rei do Brasil’.
FRANCISCO
Eu
cuido disso. Já tenho tudo em mente. O importante é a emoção. Principalmente quando
falar da morte da minha mãe.
GOVERNADOR
To
pretendendo me emocionar nessa hora também. Vou pensar no saudoso
Jean-Cloude...
FRANCISCO
A
gente se abraça, eu me recomponho e retomo meu discurso. Posso tratá-lo por pai
nesse momento?
GOVERNADOR
Ótima
ideia! Mas tem que ser nesse ponto! Na parte mais dramática, na parte da mãe
morrendo.
DUÍLIO
Era
bom um abraço bem demorado, assim a gente fotografa e usa na propaganda.
Telefone
toca, Duílio atende.
GOVERNADOR
Que
trabalheira...Tudo isso por chamar alguém de preto safado... É revoltante.
FRANCISCO
Tem
também a parte do: ‘Por mim punha num navio e mandava de volta pra África !’.
Soou um pouco forte Governador. Sugerir castração química pra impedir a
miscigenação também pegou mal. Claro! Não tanto quanto insinuar que a Lei Áurea foi precipitada e
populista.
GOVERNADOR
Eu
tava nervoso! Nessas horas você acaba falando o que pensa. Esses grupelhos se
ofendem por tudo. A intolerância impera no Brasil. Não vê esse movimento de
gays, lésbicas e travestis ? Ao invés de procurar tratamento médico pra se
curar, esses anormais e invertidos ficam por aí chamando todo mundo de
homofóbico. É justo isso?
DUÍLIO
Desculpe
interromper, mas sua filha tá aí.
GOVERNADOR
Nem
pensar! Diga que to ocupado.
DUÍLIO
Não
dá. Dona Maria Luiza já tá entrando.
Entra
Maria Luiza, filha do Governador.
GOVERNADOR
Por
favor, Maria Luiza! Estou numa reunião, não pode ir entrando assim!
MARIA
LUIZA (Olhando surpresa para Francisco)
Ticão?!
O que sê tá fazendo aqui?
GOVERNADOR
(Surpreso)
Ti-ticão?!
Como assim Ticão? Vocês se conhecem?
FRANCISCO
Nos
conhecemos.
MARIA
LUIZA (Indo até ele)
Papai
te tratou mal?
FRANCISCO
Imagine
paixão... Nos entendemos.
GOVERNADOR
(Para Duílio)
Que
diabos tá acontecendo aqui, Duílio? Pelo amor de Deus Duílio! Ela o chamou de
Ticão! Ticão Duílio!
DUÍLIO
Foi
o que ouvi... No caso... Não é um bom sinal.
MARIA
LUIZA
Pois
é muito simples. O Ticão é meu namorado.
O Governador
senta-se na poltrona com o choque.
FRANCISCO
Calma
amor. Eu e seu pai nos acertamos. Vou trabalhar com ele.
MARIA
LUIZA (Surpresa)
Ah
é? Sério?
DUÍLIO
Vai
nomeá-lo presidente do projeto “Zumbi, rei do Brasil”.
MARIA
LUIZA
É
verdade papai?
O
Governador se limita a afrouxar a gravata. Ar de choque e perplexidade.
DUÍLIO
Mas
é claro! A Neusa foi preparar a sala de imprensa..
MARIA
LUIZA
Eu
custo a crer...
Governador
passa mal. Chama Duílio para perto dele.
GOVERNADOR
(Solta a gravata, perdendo o fôlego. Apenas Duílio consegue ouvi-lo)
Um
preto, Duílio! Canalha até a medula! Pra ser um preto safado vai ter que
melhorar muito! Um preto... pegando minha filhinha. Chamou de Ticão Duílio!
Ticão!
DUÍLIO
Foi
o que ouvi... Calma. Não adianta perder a cabeça agora.
Entra a secretária
com uma prancheta na mão, ar alegre e animado. Depois, vendo Maria Luiza
abraçada a Francisco, deixa cair a prancheta com estardalhaço. Chocada.
SECRETÁRIA
Que
diabo é isso?
DUÍLIO
(Corre até ela pra impedi-la de fazer alguma besteira)
Ele
é namorado dela, Neusa. Segura a onda...
SECRETÁRIA
COMO
ASSIM?
MARIA
LUIZA
Algum
problema dona Neusa? Vejo que ficou pálida.
NEUSA
(Se contendo a muito custo)
Vocês
são...são o quê exatamente?
MARIA
LUIZA
Namorados.
Na verdade... almas gêmeas. Não é Ticão?
Francisco
limita-se a beijá-la.
SECRETÁRIA
Ti...
Ticão... E esse apelido vem do quê?
FRANCISCO
É
uma coisa intima, dona Neusa. Uma coisa assim...só nossa...
MARIA
LUIZA (Ar sacana)
Num
explica Ticão...eu tenho vergonha...
SECRETÁRIA
(Furiosa)
Preto
filho da puta!
MARIA
LUIZA
Como
é que é ?
DUILIO
(Apaziguando)
Foi
o que deu na imprensa. Afirmaram que o Governador disse isso. Um absurdo...
(Para Neusa) Cala a boca....
MARIA
LUIZA
Algum
problema dona Neusa? A senhora tá esquisita.
FRANCISCO
Senhora
não, amor. Senhorita. Dona Neusa ainda é solteira. Vai ver ficou
comovida com o nosso amor. Um amor como o nosso é o sonho de todo solitário...
Precisa trabalhar menos dona Neusa, arranjar tempo pra conseguir um marido, ter
filhos.
MARIA
LUIZA
Também
não exagera Ticão. Dona Neusa já passou da idade de ter filhos.
SECRETÁRIA
(Contendo a fúria)
Eu
tenho trinta e cinco anos!
MARIA
LUIZA (Espantada)
Serio?
Puxa... Pensei que fosse mais.
DUÍLIO
(Temendo a reação de Neusa)
São
as roupas! Dona Neusa se veste de forma muito sisuda, acaba aparentando mais
idade. Na verdade é quase uma menina.
MARIA
LUIZA
E
depois... Filho se tem com um homem... E
dona Neusa fez outras opções.
SECRETÁRIA
Como
é que é? Tá querendo insinuar o quê? A ‘senhorita’ também perdeu cinquenta
reais?
MARIA
LUIZA (Confusa, sem entender)
Oi...
Não entendi...
DUÍLIO
Gente,
pelo amor de Deus, voltemos ao “Zumbi, Rei do Brasil” . Francisco! Foco
Francisco.
GOVERNADOR
(Passando mau)
Duílio...
vem aqui Duílio...
DUÍLIO
Sim
Governador. (Ele ameaça ir mas para ao ver a forma furiosa como Neusa olha para
Francisco e Maria Luiza, oscila entre ir até o Governador e conter Neusa. Por
fim segura Neusa pelo braço e a puxa com ele.)
GOVERNADOR
O
safado tá pegando ela Duílio... Ticão Duílio! Sê ouviu? Ticão, ela falou...
(Ofegante, fala com esforço)
DUÍLIO
Ouvi
Governador.
SECRETÁRIA
Estão
namorando a muito tempo?
MARIA
LUIZA (Animada)
Praticamente
morando juntos. Aquele curso no exterior era fachada. Tava no Brasil... no meu ninho do
amor.
GOVERNADOR
(Para Duilio)
Chama
o Jarbas! Pra baixar o pau! Eu quero esse preto no tronco, levando chibata, ao
som da trilha sonora de Escrava Isaura!
MARIA
LUIZA
O
que disse papai? A gente não consegue te ouvir.
DUÍLIO
Seu
pai tá afônico dona Maria Luiza. E emocionado. Ele disse: “Eu tenho um sonho.
Eu tenho um sonho que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos dos
descendentes de escravos e os filhos dos descendentes dos donos de escravos,
poderão se sentar junto á mesa da fraternidade.” Foi o que ele disse...
Maria Luiza abraça
Francisco emocionada. Os dois ficam de namorico alheios aos outros.
SECRETÁRIA
(Para Duílio)
Mas
isto é um discurso do Martin Luther King!
DUÍLIO
Conhece
algum do Zumbi?
GOVERNADOR
Eu
quero morrer! Eu quero morrer!
DUÍLIO
Não
diga isso Governador. O vice tá fechado com a oposição!
GOVERNADOR
(Ofegante)
Duílio...
chama o Jarbas...ele sabe como desovar um corpo...Duílio.... Ele tá atrás do
meu dinheiro! Dona Neusa, ele não pode saber das contas secretas!
SECRETÁRIA
(Estranhando)
Como
assim? E a estória dos Hackers? O senhor mesmo disse pra ele.
GOVERNADOR
Que
estória?Não sei de hacker nenhum!
SECRETÁRIA
(Entendendo enfim)
Aí
meu Deus... (Aflita) Ele tá sabendo das contas.
DUÍLIO
Mas
ele não tem acesso aos dados, calma Governador, não pense no pior...
GOVERNADOR
Do...dona
Neusa... Você fornicou com esse miserável...não deu a senha pra ele,deu?
SECRETÁRIA
Claro
que não!
FRANCISCO
(Recitando o poema para Maria Luiza)
‘Tudo
se reduz a um único preceito,
que
escondo, mas direi, chegada a hora.
Eu
mais do que ninguém, a seu respeito,
mais
que vivos e mortos, sei agora.
Respondo
pelo que é meu, e somente
uma
coisa me ocupa a vida inteira:
o
que sei bem melhor que toda gente,
quero
dizê-lo. E da minha maneira. ‘
MARIA
LUIZA
Que
lindo! De quem é?
FRANCISCO
É
de um poeta russo. Aleksander Tvardovski, confesso que conheço pouco. Mas a
Dona Neusa conhece bem mais.
SECRETÁRIA
(Aflita)
Aí
meu Deus...ele tem a senha...
GOVERNADOR
O QUÊ?? Tô passando mal...
DUILIO
Calma
Governador. Ele tá em vantagem. Temos
que conhecer o inimigo. (Falando alto) Senhor Francisco, agora que o senhor faz
parte da família, podia contar mais sobre você. Pouco se sabe além do seu nome.
MARIA
LUIZA
Parte
da família... Não vai me dizer que contou pra eles Ticão?
SECRETÁRIA
/ GOVERNADOR / DUÍLIO
CONTOU
O QUÊ?
MARIA
LUIZA (Eufórica)
Estamos
casados!
Governador
leva as mãos ao peito, Secretária deixa cair de novo a prancheta. Duilio abana
o Governador.
MARIA
LUIZA
E
pra mostrar a pureza da nossa relação e calar as más línguas, casamos em
comunhão total de bens.
FRANCISCO
Mi
casa, su casa! (Beija Maria Luiza) O senhor não perdeu uma filha Governador e
sim ganhou um filho. Posso te chamar de papai ?... (Se emociona, Maria Luiza o
abraça também comovida)
GOVERNADOR
Duílio
chama o Jarbas... o Jarbas Duílio... Ou arranja
um canivete... Eu mesmo arranco os bagos dele fora!
SECRETÁRIA
(Olhando furiosa para Francisco e Maria Luiza)
Eu
tenho um alicate de unha na bolsa.
DUÍLIO
Pelo
amor de Deus! Controlem-se. Temos que agir racionalmente. Ele tá com seu
dinheiro, sua filha...
MARIA
LUIZA
O
senhor ficou feliz papai? Com tanta novidade?
GOVERNADOR
Muito...
Você não tem ideia de quanto... (Para Duílio) Vou mudar meu testamento
hoje mesmo.... quero essa daí catando latinha depois que eu morrer... Latinha!
MARIA
LUIZA
Ticão!
Sê contou?
FRANCISCO
Claro
que não.
MARIA
LUIZA
Vamô
aproveitar o momento?
FRANCISCO
(Constrangido)
Puxa
amor... Será?
MARIA
LUIZA
Claro
seu bobo.
SECRETÁRIA
Será
que temos mais alguma... surpresa?
MARIA
LUIZA (Animadíssima)
Gente...
to grávida! Se for menino vamos chamar de Benedito. Se for menina, Sebastiana.
Abraça Francisco.
Governador leva as mãos ao peito e cai morto sobre a mesa.
MARIA
LUIZA
O
senhor vai ser vovô papai... papai...papai...
Silêncio. Todos
olham seu corpo inerte. Duílio vai até ele, pega seu braço, levanta e o deixa
cair. Ele está morto.
DUÍLIO
(Para a Secretária)
Que
foi mesmo que o Getúlio Vargas escreveu na sua carta testamento?
MARIA
LUIZA
Papai!
Meu Deus... ele se foi Ticão! Não aguentou tanta felicidade...
FRANCISCO
(Indo até o Governador, confere se está morto)
Da
vida sim, carinho... Mas o nome dele ficara indelevelmente marcado nas páginas
da história, no mural dos grandes homens.
Muitas preces vão ser dirigidas a ele hoje, mas a primeira será minha...
Me acompanhem nessa oração... (Olha pro alto se concentra. Luz diminui)
Senhor... (Toque de atabaque) Senhor... (Toque de atabaque. Luz diminui mais,
foco de luz em cima do Governado morto na mesa. Francisco desfaz o ar sério e
no lugar uma expressão zombeteira)
Senhor Exu Caveira...tá entregue a sua encomenda...
Entra o ponto do Exu
Caveira – Morte na porteira. Francisco dança e canta pelo palco.
‘Ponto do Exu Caveira –
Morte na porteira
refrão]
SE MATAR O BOI
MATA NA PORTEIRA
SE MATAR O BOI
MATA NA PORTEIRA
SE MATAR O BOI
MATA NA PORTEIRA
SE MATAR O BOI
MATA NA PORTEIRA
COME A CARNE TODA
E DEIXA O OSSO PRO CAVEIRA
COME A CARNE TODA
E DEIXA O OSSO PRO CAVEIRA
[/refrão]
E DEIXA O OSSO PRO CAVEIRA
COME A CARNE TODA
E DEIXA O OSSO PRO CAVEIRA
[/refrão]
A PORTEIRA É LARGA
DEIXA O BOI PASSAR
SE ELE NÃO MORRER AQUI
MORRE EM QUALQUER LUGAR
DEIXA O BOI PASSAR
SE ELE NÃO MORRER AQUI
MORRE EM QUALQUER LUGAR
+ refrão’
FIM
REGISTRO: 11.998