ATÉ QUE A MORTE OS SEPARE






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AUTOR
Durval Cunha
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ATÉ QUE A MORTE OS SEPARE
                                                                 







PERSONAGENS:

EUCLIDES

DULCINÉIA


      Em cena apenas Euclides.  Ar ansioso, aflito caça algo nos bolsos.
EUCLIDES
O que eu não daria pra fumar um cigarro! Vinte anos sem dar um trago. Vinte anos perdidos meu Deus... Vinte anos me controlando pra não morrer de câncer de pulmão e morro de enfarte! E agora? Quem é que vai me compensar por todos os cigarros que eu não fumei? Por todas as tragadas que eu não dei! Até brócolis eu comi! Suco de beterraba! Baixa a pressão diziam... Morri com a pressão de um menino! Sacanagem... ‘O cigarro diminui o tempo de vida!’ Faz alguma diferença morrer meio dia ou meio dia e meia?  To eu agora já morto, morrendo de vontade de fumar.  Que fissura... To nem aí... Se São Pedro aparecer em pessoa vou filar um cigarro dele. Como será que foi o meu enterro... Espero que tenham colocado a bandeira da Souza Cruz no meu caixão. E uma frase dizendo: “Me desculpem... Vocês tinham razão!” Vai ver se eu me concentrar o cigarro aparece.  Deve ser assim que as coisas acontecem por aqui.  Como nos filmes.  Quer dizer... nos filmes quando agente morre aparece alguém, uma coisa solene.  Mas comigo tá tão parado... Tudo bem... não fui grande coisa na vida, mas nem um “Oi” ? Vou me concentrar!   (Se concentra) Um cigarro... um cigarro...um cigarro pelo amor de Deus... Faz assim... me manda um maço...    Entra Dulcinéia.  Ela se espanta ao ver Euclides.  
EUCLIDES
Um cigarrinho... um cigarrinho...uma guimba...uma bituca...
DULCINÉIA
Euclides!
   Euclides toma um susto ao vê-la.
DULCINÉIA
É você mesmo? Euclides.  Meu ex-marido... como é possível meu Deus? Você também morreu?
EUCLIDES
Eu morri sim e pelo visto você também... Que tá fazendo aqui?  Eu tava me concentrando... aí você apareceu... Será que é isso?! Trouxe o cigarro?
DULCINÉIA
Mas que cigarro? Ficou maluco? Claro que não!
EUCLIDES
Como não? Eu penso em cigarro e aparece minha ex-mulher que eu nem sabia que tinha morrido? Cigarro dá câncer... será que eles confundiram?
DULCINÉIA
Meu Deus... a quanto tempo a gente não se vê? Cinco anos?
EUCLIDES
Acho que mais... Sê tem certeza que não trouxe o cigarro? Vai ver colocaram no seu bolso.
DULCINÉIA
Não tem cigarro nenhum, idiota! Você tinha voltado a fumar?
EUCLIDES
Na verdade não. To a mais de vinte anos sem fumar um cigarro. E agora que eu morri não consigo pensar em outra coisa. Deu também vontade de comer um torresminho a pururuca, mas depois passou... Sê tem certeza que não tem nada no bolso. Eu me concentrei e você apareceu, só pode ser pra trazer o cigarro.
DULCINÉIA
Decididamente a morte não lhe fez bem. Você continua o mesmo de sempre e com o agravante de voltar a fumar. É essa a única pergunta que tem pra me fazer depois de cinco anos? Se eu trouxe o cigarro?
EUCLIDES
Se perguntar como você está, você responde o que? “Morta”!
DULCINÉIA
Alguém apareceu?
EUCLIDES
Você!
DULCINÉIA
Do que você morreu?
EUCLIDES
Coração.
DULCINÉIA
Eu sabia! Eu sabia!
EUCLIDES
Não! Isso não! Tai uma coisa pra não se fazer depois de cinco anos.
DULCINÉIA
Agora você acredita que gordura e sal demais fazem mal?
EUCLIDES
Tá, tá, tá bom... Você estava certa! Tá feliz? Tá feliz? E você? Qual dos teus ex-maridos te matou? Ou teria sido o atual? Eu tenho um álibi... eu tava aqui.
DULCINÉIA
Foi... foi num acidente de avião.
EUCLIDES (Surpreso)
Acidente de avião?! Você consegue se pavonear até na morte? Impressionante! Era mesmo esperar demais que tivesse sido atropelada por um ônibus ou engasgado com um bagaço de laranja.
DULCINÉIA
Pois é... Uns são vítimas da fatalidade do destino, outros de uma dieta inadequada...
EUCLIDES
Nem por isso está menos morta...  Como eu me arrependo de ter parado de fumar... O que eu não daria pra dar uma fumada agora... Daquelas de acender um cigarro na bunda de outro e continuar fumando... Aí que delícia...
DULCINÉIA
Que injustiça! Eu devia ter vivido, no mínimo, uns quinze anos a mais que você.  Aliás, o que eu estou fazendo aqui ao seu lado? Tem alguma coisa muito errada! Eu sempre pensei que assim que as pessoas morressem Cristo viesse receber a gente.
EUCLIDES (Surpreso)
Quem?
DULCINÉIA
Cristo! A gente morreu, não morreu?
EUCLIDES
E você lá fez alguma coisa relevante na vida pra merecer uma honraria dessas? Se ele te mandasse um e-mail já seria demais! Já seria uma honra indevida.
DULCINÉIA
E nem fiz nada tão terrível a ponto de ser recebida pelo ex-marido.
EUCLIDES
Alto lá! Eu não vim te recepcionar não senhora! Se tá pensando que eu sou o que? Porteiro de cemitério? Eu sô pedi um cigarro.
DULCINÉIA
Eu li num livro espírita que os parentes que morrem primeiro vêm recepcionar os recém-chegados.
EUCLIDES
E eu lá sou seu parente por acaso? Ex-mulher é parente? Ex-mulher é a parte contrária na vara de família.  A litigante!
DULCINÉIA
E o que é que o senhor veio fazer aqui?
EUCLIDES
Eu morri lembra? E primeiro que você. Aliás, se surgir algum anjo ele vai cuidar do meu caso pra depois cuidar  do seu. É por ordem de chegada.
DULCINÉIA
Tá dando ordem aqui também? Tá organizando a fila? Imaginou se o anjo for enumerar os seus pecados um a um? Vou passar o dia todo esperando.
EUCLIDES
Vai ao shopping querida. Aproveita e na volta me trás um maço de cigarros.
DULCINÉIA (Andando de um lado para outro)
Tem alguma coisa errada aqui. Oh... alguém... tem alguém me ouvindo? (Olha pra cima, fala para o alto) Alguém se enganou. Esse aí não é meu parente não. É meu ex-marido. E em vida ele nunca foi boa coisa...
EUCLIDES
Eu era um ser humano melhor antes de casar com você... sabe como é...com a convivência...   
DULCINÉIA
Eu não aceito ficar no mesmo lugar que esse sujeito!Tem alguma coisa errada... A morte é um momento solene, um momento onde as verdades maiores se manifestam... Eu morro e dou de cara com você? Não é possível!
EUCLIDES
É... pra quem tava esperando Jesus Cristo, reconheço que é pouco... Quanto às verdades maiores, ficou demonstrado que existe algo além da morte.  Pelo menos isso.
DULCINÉIA
Pois é... o senhor não era materialista ferrenho. “Morreu acabou”.
EUCLIDES
Eu me enganei duplamente.  Devia ter acreditado em Deus e continuado a fumar.
DULCINÉIA
Considerando nossa atual situação, eu escolheria melhor as palavras.
EUCLIDES
Por isso que inventou essa estória de que ‘leu num livro espírita’? Que eu saiba você só comprava o livro depois de ter visto o filme.
DULCINÉIA
Você tá me chamando de superficial?
EUCLIDES
Não necessariamente.  Em alguns casos o filme era bom.
DULCINÉIA
Muita coisa aconteceu desde que a gente se separou. Foram cinco anos sem te ver. Eu melhorei muito como ser humano nesse período. Inclusive, me tornei Kardecista.
EUCLIDES
Sei... e quem te garante que o Deus real, esse que existe, não seja evangélico? Se for esse papo de kardecista vai queimar o seu filme. Um ex-ateu, pelo menos, não estava comprometido com nada.
DULCINÉIA
Os oportunistas nunca estão comprometidos com nada! Além dos próprios interesses. Acho que eu sei o que estou fazendo aqui.
EUCLIDES
O quê?
DULCINÉIA
Acho que o Criador me trouxe pra que eu pudesse te perdoar e você seguir pelos caminhos dos espíritos de pouca luz...
     Euclides tem uma crise de riso.
EUCLIDES
Vai ver Cristo estava ocupado e te mandaram no lugar dele.  
DULCINÉIA
Vai brincando... Que outro motivo seria?
EUCLIDES
Acho que o Criador me trouxe pra que eu pudesse te perdoar e você seguir pelos caminhos dos espíritos de pouca luz...    
   DULCINÉIA tem uma crise de riso.
DULCINÉIA
Faz-me rir.
EUCLIDES
Agora eu entendo bem porque a gente se separou.
DULCINÉIA
Isso é moleza. O duro é entender porque a gente se casou. Mas vamos tentar descobrir o que está acontecendo aqui. Vamos recapitular, deve ter uma lógica por trás disso. Qual foi a última pessoa com quem você falou em vida?
EUCLIDES
A enfermeira. Ela apertou minha mão e disse: “Não se preocupe seu Euclides. Vai dar tudo certo.” Meia hora depois eu tava morto.
DULCINÉIA
É sempre assim... Eu ouvi algo parecido.
EUCLIDES
Sério?! E o que foi que o piloto disse antes do avião cair?
DULCINÉIA (Embaraçada com a pergunta)
Como assim?
EUCLIDES
Você não morreu num acidente de avião?
DULCINÉIA
Ora... não vamos perder o foco! Voltemos ao ponto. O que estamos fazendo os dois aqui juntos? Depois de mortos?! Coisa que a gente nem fazia quando vivos?
EUCLIDES
Por favor, não se altere... Mas eu ainda acho que você veio me trazer o cigarro.  Dá uma olhadinha nos bolsos...
DULCINÉIA
Vá à merda Euclides!!
EUCLIDES
Tá vendo como você é? Custa olhar?
    Entra voz do Diabo.  Uma voz Grave, como seria de se esperar, mas num tom mais ‘superior’ do que ameaçador.  Como um Juiz severo diante de pequenos marginais.  
DIABO
Dona Dulcinéia, Senhor Euclides.
DULCINÉIA (Ficando de joelhos assustada)
É ele! Sim, senhor! (Puxa Euclides para ele se ajoelhar também) Estamos aqui, ô senhor! Humildemente aguardando suas palavras, agora que estamos às portas do seu reino... (Faz uma reverência, imitada com atraso por Euclides)
DIABO
A que ‘senhor’ está se referindo?
DULCINÉIA (Insegura)
Cristo?
DIABO
Não.
DULCINÉIA
São Pedro?
DIABO
Não.
DULCINÉIA
Santo Agostinho? São Marcos? Santo Antonio? São Lucas? Arcanjo Gabriel?
DIABO
Nenhum deles! Eu pediria que ficassem em pé. Aqui as Orações e quaisquer gestos de louvor são punidos severamente.
      Os dois se levantam e se abraçam assustados, compreendendo enfim que estão no inferno e falam com o diabo.
DULCINÉIA (Para Euclides)
Acho que a gente não ‘passou de ano’, Euclides.
EUCLIDES
Também acho... Mas será que ainda temos direito a recuperação ou fomos reprovados direto?
DIABO
Isso o tempo dirá, senhor Euclides. Creio que já descobriram onde estão e com quem estão falando?
     Os dois balançam a cabeça que sim assustados. Permanecem abraçados.
DIABO
Ótimo. Não dá para dizer: ‘sejam bem-vindos’, pois o fato de não o serem os trouxe até aqui. Mas garanto a vocês que a hospedagem é justa e merecida.
DULCINÉIA (Se soltando de Euclides)
Isso é um grande equívoco! Eu não deveria estar aqui!
DIABO
Todos dizem isso. Assim que se recuperar do susto, o senhor Euclides dirá o mesmo.
DULCINÉIA
Mas no meu caso é pra valer! Houve um grande engano. Os dois  
DIABO
Aqui não se comete enganos, senhora.
DULCINÉIA
Eu tenho certeza disso! Mas veja meu senhor... entendo o que vai dizer... (Aflita caçando as palavras certas.)...  Dirá que o sistema aqui é a prova de erros e jamais se engana. Ok! Concordo com o senhor. (Continua a aflição com as palavras que não vem) E imagino que jamais iria acreditar no contrário. (Finalmente parece achar o discurso certo) Mas não estou falando de um erro sistêmico gerado de dentro pra fora. Não! Me refiro a variáveis estocásticas surgidas de fora pra dentro. Uma somatória de erros improváveis que sozinhos não produziriam nada, mas que alinhados produziram uma singularidade. Compreende?
DIABO
Perfeitamente. É a chamada teoria do Caos.
DULCINÉIA
Ótimo! Estamos de acordo então. É dessa singularidade que estou falando e não de um erro sistêmico nesse... nesse estabelecimento que o senhor dirigi tão brilhantemente. Com tanta dedicação...
DIABO
Sim, senhora Dulcinéia.  Creio que é nesse ponto da conversa que irá expor o argumento definitivo.  Que me convencerá de que a senhora é essa singularidade. Para em seguida deixar meus domínios e subir até as instâncias superiores. Acredite... vai ser difícil.
DULCINÉIA
Pelo contrário! Essa é a parte mais fácil.
DIABO
Sei... E que prova, que argumento seria esse?   
DULCINÉIA (Exultante. Tendo a causa como ganha)
ELE! (Aponta para Euclides)
DIABO
O senhor Euclides? É ele o seu argumento incontestável?
DULCINÉIA
Exatamente! (Euclides olha feio pra ela) A simples comparação entre as minhas ações terrenas e as dele já serão prova suficiente. É como colocar o feio diante do belo, um exclui o outro.
EUCLIDES (Para Dulcinéia, irônico)
Obrigado Dulcinéia.  É sempre bom contar com você nos momentos difíceis...  
DULCINÉIA (Para Euclides)
Nada pessoal... (Para o Diabo) A minha conduta moral durante a vida e meus padrões éticos sempre foram muito superiores aos do Euclides, daí eu não posso, depois da vida, ter a mesma sorte que ele. Um simples levantamento, mesmo superficial já vai deixar isso claro como água. O senhor poderia me fazer essa gentileza? Mesmo porque a presença de alguém superior num ambiente inferior pode causar um desequilíbrio no lugar. E desencadear novas variáveis estocásticas.
DIABO
Perfeitamente. A comparação pecado a pecado já está sendo feita senhora...
DULCINÉIA (Para Euclides, conciliadora)
Não leve pro pessoal Euclides. Esse lugar é pra pessoas como você. Pra que purguem seus pecados, seus erros e retomem o caminho da luz, da virtude. (Aperta as mãos dele afetuosamente) Eu tenho certeza que um dia Euclides..., um dia você vai ascender como ser humano e se reencontrar comigo nos planos superiores. Mas olha... lá de cima eu vou estar torcendo por você....
DIABO
Pronto! Fui tudo medido e pesado senhora Dulcinéia.
DULCINÉIA (Feliz)
Que bom! Por onde é a saída?
DIABO
Foi tudo medido e pesado.  Constatou-se que os dois são pecadores na mesma medida, cada um a seu modo. Daí estarem onde estão.
DULCINÉIA (Chocada)
O QUÊ?
DIABO
Isso que ouviu e creio que ouviu bem. A senhora não é uma meia grama sequer, melhor que o senhor Euclides.
DULCINÉIA  
Pois eu exijo uma recontagem! Que métrica é essa que me iguala a um... um sacripanta! Adúltero! Que me chifrou com mais de mil mulheres diferentes?
DIABO
Não foram tantas assim. A única que poderia ter um peso maior, em termos de pecado cometido, foi sua irmã.
DULCINÉIA (Horrorizada)
Você teve um caso com a Bete ?
EUCLIDES
Não foi minha culpa! A culpa foi do ex-marido dela, o Olavo.  Depois da separação eu o encontrei por acaso.  Meteu o pau nela. Que era safada, que não valia nada, que só prestava pra uma coisa... E foi justamente ele ter falado nessa ‘coisa’ que me instigou a ter um caso com ela. Fui induzido ao erro.
DULCINÉIA
E o canalha ainda bota a culpa num outro canalha igual a ele?! E essa ‘coisa’, seria o que?
EUCLIDES
Prefiro não entrar em detalhes...
DULCINÉIA (Para o Diabo, chorosa)
Isso não é justo! Eu não posso ter o mesmo destino que um canalha como esse!
DIABO
É mesmo? O apelido ‘Minha Cadelinha’ lhe é familiar?
DULCINÉIA (Abandona o ar choroso e se encolhe toda. Ar matreiro de quem foi pego num delito)
E-eu?! Num sei... não...claro que não.
DIABO
Acha mesmo que pode mentir pra mim? Cuidado com o que diz dona Dulcinéia. Aqui cada palavra tem um preço. E é cobrada a vista. Conhece o apelido ‘minha cadelinha’?
DULCINÉIA (Envergonhada, mão no rosto, fala baixinho)
Sim...
DIABO
Mais alto.
DULCINÉIA
Sim.
DIABO
Mais alto!
DULCINÉIA
Sim!
DIABO
Senhor Euclides...
Euclides (Se antecipando a pergunta)
Nunca ouvi falar nisso! Nem sei do que estão falando.
DIABO
Não é essa a minha pergunta.  Senhor Euclides, o senhor se lembra de um certo Luiz Gustavo Rivera?
EUCLIDES
Claro que eu lembro. O Déco! Nossa... Amigo da vida toda. Desde moleque.  Empinamos muita pipa e soltamos muito balão juntos... Mas... porque ,assim...tá perguntando? Que que tem a ver... (Olha para Dulcinéia e entende enfim. Para ela, furioso) Desgraçada! Isso não é cadelinha! É cachorra mesmo!
    Parte pra cima dela. Ela foge.
DULCINÉIA
Que moral tem você pra falar de mim? Eu tava me sentindo sozinha, carente...
EUCLIDES
Comprasse um gato! ‘Tava sozinha, carente... ’ Quando Mulher diz: ‘To carente’. Tradução: ‘Vou dar pro primeiro que aparecer!’ Aliás..., falando em mulher ordinária (Lascivo, querendo vingança)... sabe como é que eu apelidei a sua irmã? ‘Boca nervosa!’ Essa era a ‘coisa’ que não quis te falar.  Menina... coisa de louco. Ela tinha uma contorcionista russa no lugar da língua. E áspera... só de lembrar arrepia.  (Ela ameaça bater nele, ele foge) No resto era o básico. E depois ainda tinha que agüentar as lamurias dela toda vez na hora de sair do motel. “Eu não devia ter feito isso.” “A Dulcinéia não merece.”“ Jurei pra mim mesma que não viria mais... ”“ Se mamãe fica sabendo ela morre...” Chata! Deve ser de família isso. Pena que você não herdou a ‘língua bailarina’.
DULCINÉIA
Pústula! Cafajeste! (Dá um tapa no braço dele. Ele se esquiva)
EUCLIDES
A sua mãe inclusive...
DULCINÉIA (Interrompendo Assustada)
Não... com a minha mãe não.... Minha mãe não!
EUCLIDES
Calma! Não quis dizer isso. Eu ia dizer que sua mãe ficou sabendo. Deu um rolo, veio tirar satisfações, me chamou de canalha e tudo.
DULCINÉIA
Você é um canalha! Seu canalha! E eu que ainda me sentia culpada toda vez que saia com o Déco...  
EUCLIDES
Claro! Devia infernizar ele também na saída do motel: “ Eu não devia ter feito isso.” “ O Euclides  não merece.” “ Jurei pra mim mesma que não viria mais...” “ Se o Euclides  fica sabendo ele morre...”. Mulher sem vergonha é tudo igual! O arrependimento é sempre na saída do motel. Nunca na entrada.
DULCINÉIA
Eu tava solitária!
EUCLIDES
Comprasse um gato! No máximo. Com mulher safada, até um cachorro já é perigoso.
DULCINÉIA (Horrorizada)
Seu degenerado, seu energúmeno!
DIABO
Vejo que já se entenderam. Podemos então dar procedimento aos trabalhos.
DULCINÉIA
Não, não, não! Por favor! As coisas não podem ser feitas assim, tem que me dar chance de dizer ao menos uma palavra em minha defesa!
DIABO
A senhora já fez isso. E com muitas palavras inclusive. Vocês não estão aqui para serem julgados, vocês estão aqui por serem culpados.
EUCLIDES
Mas meu senhor..., dentro da liturgia local, não teria alguma coisa que nos favorecesse de algum modo e abrandasse nossa pena? Tudo bem... não somos grande coisa, mas também não somos tão ruins assim.
DIABO
Sim tem.
DULCINÉIA
E que eu teria que fazer pra... abrandar a minha situação?
DIABO
Vocês já fizeram.   
DULCINÉIA/EUCLIDES
Já?
DIABO
Sim. Todos recém-chegados tem essa última oportunidade de provar serem possuidores de alguma virtude superior, de valores éticos internos. E com isso abrandar sua pena. De início os dois se saíram bem. Ao saberem com quem estavam falando, a primeira reação que tiveram foi se abraçarem. Buscaram refúgio um no outro. Na maioria dos casos as pessoas buscam refúgio ‘atrás’ do outro. Um usa o outro como escudo, depois ficam trocando de posição, numa espécie de dança das cadeiras sem cadeiras. Mas depois apenas um de vocês continuou, ainda que timidamente, pelo caminho da virtude, enquanto o outro se calou. Apenas esse tem alguma esperança, muito pouca é verdade, porém tem que ser considerada.
EUCLIDES (Revoltado, achando que ele que se deu mal)
Mas isso não é justo! Confesso que fiquei meio assustado com a situação, mas depois essa daí caiu numa verborragia que não me deu chance de uma só palavra! Por isso ela é mais ‘virtuosa’ do que eu?
DIABO
Não é dela que estou falando e sim do senhor. O senhor é que tem essa réstia de virtude.
DULCINÉIA (Revoltada)
Como é que é? Além de tudo ainda tenho que ouvir um absurdo desses? Essa criatura a quem o senhor chama de ‘virtuosa’, mal arriscou algumas palavras! Ficou apalermado se borrando todo! Enquanto eu tomava a frente da situação, fazendo jus a tradicional covardia masculina! Aliás, o grande questionamento que ele fez hoje foi: “você trouxe o cigarro?” Mas já entendi tudo. O bom e velho machismo ataca novamente! Pior! O Pavoroso corporativismo masculino! Eu queria só cinco minutos na internet e as mulheres do mundo inteiro saberiam disso! Deviam começar uma greve. Se recusar a morrer enquanto uma injustiça dessas não fosse corrigida!
DIABO
A senhora é hábil com as palavras, dona Dulcinéia. Pena que essa habilidade pese contra a senhora.
DULCINÉIA
Como assim?
DIABO
Do abraço inicial que os redimia a senhora foi a primeira a se livrar. E tentou usar como prova de inocência, a necessária culpa do senhor Euclides. Seu discurso é sempre na primeira pessoa, “O que ‘eu’ teria que fazer pra abrandar a ‘minha’ situação?” Enquanto o discurso, sempre curto e modesto do senhor Euclides era “Não somos grande coisa, mas também não somos tão ruins assim.” Ele é o único a usar a pessoa verbal ‘nós’.  Ao contrário da senhora, ele ainda continua abraçado.
DULCINÉIA
Eu às vezes... as vezes eu me excedo um pouquinho...não meço bem as palavras...
DIABO
Mas é justamente aí que as palavras saem no tamanho real.  Sem serem aumentadas ou diminuídas.  Vocês são dois e dois são os lugares para onde podem ir.  Um deles preparem-se, é ruim. Mas o outro, acreditem, é muito pior.
       Euclides e Dulcinéia se encaram por um instante e se abraçam novamente.
DULCINÉIA
Eu to com medo Euclides! Você é um canalha, um pilantra, uma pústula, mas você não vai me deixar sozinha, vai?
EUCLIDES
Claro que não! E depois... eu to com mais medo que você. Como eu me arrependo de tudo que eu fiz. Minha mãe bem que tentou me por no catecismo. Eu não quis! Quem sabe a minha vida tivesse tomado outro rumo. O catecismo era no mesmo horário das aulas de natação... e eu ia ficar sem ver as menininhas de biquíni ! Por isso que eu fiquei Ateu! Achei que Deus é um sujeito malvado que não deixa a gente fazer aula de natação.
DULCINÉIA
Euclides...Euclides...nesse lugar mais pior...deve ter barata Euclides! (Tem uma crise de choro)
EUCLIDES
Meu senhor... eu apelo aos seus bons sentimentos...
DIABO
E eu apelo ao seu raciocínio para não fazer apelos descabidos.  
DULCINÉIA (Chorosa, mal consegue falar)
Senhor... será que ...será que não podia facilitar um pouco as coi... (Chora) Desculpe... não consigo me controlar.
DIABO
Não precisa se envergonhar nem tentar controlar o choro, dona Dulcinéia. Aqui seu sofrimento será sempre apropriado e bem vindo.
     Ela tem uma crise de choro ainda maior.
DIABO
Creio que é chegada a hora de cada um ir ao lugar que lhe é devido.  
EUCLIDES
Então tudo acaba assim?  Tudo acontece por acaso sem o exercício da nossa vontade?
DIABO
Como já disse uma vez, aqui cada palavra tem seu preço e é cobrada a vista.  O senhor já conseguiu uma pequena vantagem. Posso lhes conceder uma última prova que pode fazer o senhor perder o pouco que conseguiu. Mas também pode elevá-lo ainda mais.  Ao purgatório.  Que é o máximo que se consegue nessas paragens.  O mesmo vale para dona Dulcinéia.  O lugar que tem agora, que é muito ruim. Tem uma infinidade de andares que ficam mais abaixo e que vão ficando cada vez piores. Querem arriscar?
OS DOIS
Queremos!
DIABO
Pois muito bem. Um teste muito simples. Até banal. Dona Dulcinéia... para onde o senhor Euclides merece ir?
DULCINÉIA (Confusa)
Acho que o senhor se confundiu.  O senhor está querendo perguntar para onde eu devo ir?
DIABO
Não.  Foi isso mesmo que eu disse: para onde o senhor Euclides deve ir?  Pergunta mais fácil que essa é impossível.  Há segundos atrás era taxativa em afirmar que ele devia descer aos infernos e a senhora ascender aos céus.
EUCLIDES (Revoltado)
Pêra aí! Que negócio é esse? Não tenho direito a me manifestar? A corda vai direto pro meu pescoço?
DIABO
Mas eu lhe disse que já tinha conseguido uma pequena vantagem e lhe perguntei se queria arriscar. O senhor disse que sim. Com isso colocou o próprio destino nas mãos da senhora Dulcinéia. O jogo é pelas minhas regras.  Podia ter ficado com o que tinha... Agora pode ficar sem nada.
EUCLIDES (Mãos a cabeça aflito)
To perdido... to perdido... Meu senhor... por caridade...já que está tudo perdido. Me permita um último cigarro. Melhor... um último maço. Pelo que me espera na eternidade eu creio que não seja pedir muito...
DIABO
Desculpe mas não é permitido fumar aqui.
EUCLIDES (Horrorizado)
O QUÊ? Não é permitido fumar aqui?! Se aqui não pode fumar, onde vai poder?
DIABO
Tudo a seu tempo senhor Euclides. Dona Ducinéia... Não estou ouvindo sua voz. O que não é muito comum. Não vai recorrer às variáveis estocásticas ou a alguma singularidade?
DULCINÉIA (Aflita)
O senhor não pode fazer isso!
DIABO
Mas eu não fiz nada, quem vai fazer é a senhora. Uma coisa tão simples, a senhora foi taxativa em afirmar ser merecedora de um lugar melhor. É só dizer: eu mereço o purgatório e o Euclides os círculos infernais. Pronto!
DULCINÉIA olha aflita e penalizada para Euclides.
EUCLIDES (Indo até ela decidido)
Ambos sabemos o que vai fazer. Então faz logo! Assim acaba com esse martírio e eu posso fumar o meu cigarro.
DIABO
Aqui não é permitido fumar senhor Euclides. Já lhe disse.
EUCLIDES
Mas pra onde eu vou é! Ou não é?
DIABO
Sim é.
EUCLIDES
Pois então...
DIABO
O senhor trouxe cigarro?
EUCLIDES
Como assim?
DIABO
Lá não tem.
EUCLIDES
Pois eu vou pegar as baratas da Dulcinéia botar fogo na cabeça delas e puxar a fumaça pela bunda! Claro... isso se tiver fogo lá embaixo. Se não for proibido pelo corpo de bombeiros.
DIABO
Tem fogo sim senhor Euclides, pode ficar tranqüilo. E então dona Dulcinéia? O seu silêncio chega a ser constrangedor. Confesso estar sentindo falta do som da sua voz.
DULCINÉIA (Indo até Euclides, acaricia seu cabelo, ar comovido)
O que deu errado com a gente Euclides?
EUCLIDES
Tudo! Não tá vendo aonde viemos parar? Deu errado com a gente e com a gente e os outros que ficaram com a gente.
DULCINÉIA
Eu to com medo Euclides... ele disse que tem barata lá.
EUCLIDES
Pode deixar! Eu vou fumar uma por uma.
DIABO
Só uma correção: eu não disse que tem barata lá embaixo.
DULCINÉIA (Aliviada)
Não tem?
DIABO
Tem. Mas eu não cheguei a dizer que tinha. A senhora supôs, acertadamente. O que não chega a ser problema pro senhor Euclides, que vai incluí-las na sua dieta.
EUCLIDES
Eu não vou comer, só vou fumar.
DIABO
Que seja. O seu tempo se esgotou dona Dulcinéia. Para onde o senhor Euclides deve ir?
DULCINÉIA (Aflita)
Diz alguma coisa Euclides! Me ajuda! Que não seja algo relacionado a cigarro, por favor!
EUCLIDES
Todos sabem o que vai fazer. E nem há outra coisa a fazer... Acaba logo com isso. Eu vim parar aqui por culpa própria, por uma dieta inadequada, como você diz. E você, por um azar incrível, por um acidente de avião. É menos culpada do que eu.
DIABO
Acidente de avião?! Dona Dulcinéia morreu ao contrair infecção hospitalar num implante de silicone.
EUCLIDES (Achando graça)
O que? Eu não acredito. (Ri)
DULCINÉIA (Para o Diabo)
Nós sabemos muito bem que o senhor tudo sabe! Mas o senhor não podia ao menos fingir que não sabe de vez em quando? Nós os humanos nos entendemos assim, um finge que fala a verdade e outro finge que acredita. A isso nós chamamos “humana compreensão”.  (Para Euclides, vendo que ele ainda ri) Quer parar? Quer parar?
EUCLIDES
Bem que eu tava achando essa estória de avião esquisita... (Olhando para os peitos dela) E o pior é que não aumentou nada. Pra mim continua pequeno.
DULCINÉIA
Eles não chegaram a colocar imbecil!
EUCLIDES
Ué?! Por que não?
DULCINÉIA
Eu morri, lembra?
EUCLIDES
Mas que falta de consideração! Você deu a vida por eles! Custava terem colocado? Iam dar um volume bonito com você deitada no caixão.  (Ri)
DULCINÉIA
E eu com o coração dilacerado por tua causa.  Seu cafajeste comedor de irmã. Cadê aquele menino que conheci na adolescência? Que fim levou? Quando jovens os homens parecem ursinhos... depois eles ficam velhos...e ficam parecendo ursos. Na certa esqueceu a noite do nosso primeiro beijo. Na pracinha.
EUCLIDES
Como é que eu podia esquecer. Você me bateu!
DULCINÉIA
Claro! Você passou a mão na minha bunda!
EUCLIDES
Mas depois do beijo eu achei que a gente tava namorando
DULCINÉIA
E tava! E isso te dava o direito de passar a mão na minha bunda?
EUCLIDES
Claro! Se não for assim, pra quê namorar?Tá vendo como você é? E eu não virei urso não senhora! Posso até ter virado. Mas e vocês mulheres? Vocês mudam muito mais que nós com o tempo. No início parece tudo perfeito... Os homens sempre procuram a figura da mãe nas mulheres. No principio parece dar certo. Uma coisa linda, mágica... uma mãe com quem a gente pode transar... Mas aí o tempo passa... e elas vão virando madrastas, tias velhas, professoras ranzinzas de matemática... e o que é pior...a gente passa a transar  cada vez menos....
DULCINÉIA
Eu te dei a minha mocidade... a minha virgindade...
DIABO
Creio que seja nesse ponto que eu devo fingir não saber?
DULCINÉIA
Exatamente!
EUCLIDES
A gente cobra tudo do outro.  Mas nunca oferece nada.  Vai ver é por isso que estamos aqui...
DIABO
O tempo acabou...
EUCLIDES
Foi bom te ver...
DIABO
Sua resposta dona Dulcinéia. Pra onde o senhor Euclides deve ir?
DULCINÉIA (Após breve hesitação)
Para onde eu for...
EUCLIDES (Surpreso)
Se tá falando sério? Sério mesmo?
     Os dois se abraçam e se beijam.
DIABO (Rindo)
Parabéns dona Dulcinéia. Uma resposta sincera e sábia. Será feita a sua vontade.
   Os dois se abraçam assustados.
DULCINÉIA
A gente jurou viver juntos pra sempre no casamento e só agora, nesse lugar, isso vai ser pra valer. Eu to com medo Euclides!
EUCLIDES
Eu também! Vai ser agora.  Se prepare pro pior. E no pior tem barata! Não entra em pânico!
DIABO
O destino de vocês foi decidido.
EUCLIDES
A gente é novo aqui meu senhor... será que não podíamos ficar num lugar mais tranqüilo, se adaptando por assim uns... mil anos mais ou menos?
DIABO
Infelizmente não poderei desfrutar da companhia de vocês. Uma pena...
OS DOIS
Como assim?
DIABO
Vocês conseguiram um lugar no purgatório. (Os dois vibram eufóricos) A alegria de vocês só é menor que a minha tristeza. De fato estava até simpatizando com ambos e iria gostar muitíssimo de atormentá-los por toda eternidade...
EUCLIDES (Aliviado)
Não esquenta. Quem sabe uma outra vez.
DULCINÉIA (Puxando-o fortemente pelo braço)
Não vá falar alguma merda e por tudo a perder!
DIABO
A saída é à direita de vocês. Tem uma longa escada parecendo ir ao infinito. No alto dela está o purgatório. Não me perguntem o que tem lá, pois está fora dos meus domínios.
EUCLIDES
Imagine, por pior que seja, vai ser bem melhor do que isso aqui.
DULCINÉIA (Puxando de novo)
Não ouviu o que acabei de dizer?
DIABO
Agora vão.
DULCINÉIA
Não vá dizer algo do tipo: foi um prazer conhecê-lo, te vejo em breve...
EUCLIDES (Para ela)
Ta pensando que sou algum idiota?(Para o diabo) Então tá. Estamos indo então. Olhe... sabe que nos filmes aqui seria bem pior.( Dulcinéia olha furiosa para ele ) Até que é limpinho aqui, não é Dulcinéia?
DIABO
O senhor acha?
EUCLIDES
Claro! O senhor assistiu Spawn, o guerreiro do inferno?
DÚLCINEIA (Puxando-o)
Vamô embora! Vamô embora!
DIABO
Eu só posso me mostrar completamente quando os recém-chegados  foram definitivamente condenados ao castigo eterno. Mas como simpatizei com vocês posso abrir uma exceção.
DULCINÉIA (Aflita)
NÃO! NÃO! NÃO!
EUCLIDES
Já tamô indo! Já tamô indo!
    Se encaminham para saída.
DULCINÉIA
Nós vamos melhorar como seres humanos! Seremos pessoas melhores depois dessa experiência.
DIABO
Espero. Pois do contrário voltarão para cá.
DULCINÉIA
Dessa vez a gente vai passar de ano, não é Euclides?
EUCLIDES
Claro que sim! Foi um prazer conhecê-lo! A gente se vê!
DIABO
O QUÊ?? FORA DAQUI!!
   Os dois saem correndo.


FIM
   





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